domingo, 15 de dezembro de 2013

Surpreendentemente, como só nós, humanos: o jardim na cidade

Antes de ser um ser sinónimo de uma zona da cidade ou o nome de uma estação de Metro, o Campo Grande, em Lisboa, era o Jardim do Campo Grande, um lugar de passeio e de lazer dos lisboetas durante cerca de dois séculos, desde o seu desenho como «Passeio Público», no reinado de D. Maria I. Contudo, nos últimos trinta anos, a utilização do Jardim tornou-se muito condicionada, não apenas pelas vias rápidas do tráfego rodoviário de acesso Norte a Lisboa, que o rodeiam como um muro, mas também pela ausência de investimento camarário na respectiva manutenção: uma tirinha de verde, envelhecido e abandonado, em plena da selva de asfalto e de trânsito.

Via http://pelosjardinsdelisboa.blogspot.com/2008/08/parquejardim-do-campo-grande-cg_10.html
Antes, muitas e diferentes gerações de lisboetas fruíram deste espaço de formas diversas: no século XIX, assistindo a corridas de cavalos e indo às várias feiras que ali tinham lugar, depois passeando, merendando e convivendo. E, já na segunda metade do século XX, aprendendo a nadar nas Piscinas do Campo Grande, alugando barcos a remos num dos seus lagos artificiais, lanchando nas duas explanadas ali existentes. Essa foi uma parte da minha infância e as tardes que as minhas irmãs e eu lá passámos verdadeiros momentos de alegria pura.

Já era a tal tirinha de 1200 metros de comprimento por 200 metros de largura, mas, superado o perigo de atravessar a «via rápida», era um jardim extraordinário, com árvores gigantescas, bancos de madeira, relvados frescos e arruamentos sinuosos, onde as crianças corriam e brincavam, os jovens andavam de bicicleta, os mais velhos liam o jornal, os namorados caminhavam de mãos dadas...


Via http://mulher.sapo.pt/actualidade/em-foco/
Reaberto ao público há pouco tempo, depois de cerca de dois anos de obras, o jardim parece ter renascido. Dou comigo mesma a pensar que, mesmo com o tráfego que o cerca como uma barreira asustadora, tão perigosa que várias pessoas aí morreram atropleladas, esta «amostra urbana» de «natureza domesticada» continua a atrair-nos e a oferecer-nos bem-estar e aleria de viver. Emanando uma vitalidade que nos abençoa e que muitas vezes menosprezamos, de tal modo nos formatámos já à vida da cidade grande.

Espaço de convívio transgeracional e por isso mesmo precioso, o Jardim do Campo Grande foi celebrado no Fado do Campo Grande (letra de Ary dos Santos, música de Vitorino de Almeida), Neste fado que é uma declaração de amor a Lisboa, reconheço-me sempre com alguma emoção nos versos iniciais:  «A minha velha casa,/ por mais que eu sofra e ande,/ é sempre um golpe de asa,/ varrendo um Campo Grande...».

5 comentários:

  1. Maria,
    Aproveito esse teu post para te enviar votos de um 2014 com muita paz e o que mais você estiver precisando no momento! Ainda que anônimamente, sempre visito o seu blog, leio os seus posts e maravilho-me com a delicadeza das suas palavras e com o amor que passas através da sua escrita. Amor pelo que foi e pelo que é. Amor pelo esperado e pelo inusitado. Pelo conhecido e pelo anônimo. Que você prossiga assim, simples, não mercenária, não mercantilista. Para você, o meu apreço e os melhores auspícios.

    ResponderEliminar
  2. Olá, anónimo(a),
    Muito obrigada pelas suas palavras tão gentis e seguramente demasiado elogiosas para o que aqui vou escrevendo. Os blogues são excelentes ferramentas de aprendizagem e de incentivo a todo o tipo de «trabalho» que quisermos levar por diante, incluindo o trabalho interior para nos tornarmos pessoas melhores. Porque sabemos que qualquer pessoa nos pode ler e, eventualmente, identificar-se connosco e ajudar-nos na «construção» de uma comunidade mais forte que lute por uma vida e um mundo melhores. Mais verdadeiros, mais solidários e mais gratos por tanto de bom que nos é oferecido todos os dias. Desejo-lhe, a si e aos seus e tanto quanto para mim, um um excelente 2014.

    ResponderEliminar
  3. Maria,
    Não exagero, não. Permita-me explicar: há algum tempo o nosso modus vivendi começou a me incomodar deveras. Jamais fui consumista, mas às vezes via-me sendo seduzida pela publicidade (mais especificamente, pela indústria de bens culturais, que Adorno já há tempos identificou tão bem) quase contra a minha vontade. E fui percebendo que precisava mesmo radicalizar, pois o Brasil é agora um paraíso do consumo (vivemos um capitalismo tardio e equivocado). Bem, passei a procurar ler a experiência de outras pessoas com redução de consumo, blogs "minimalistas" e afins. Num primeiro momento, fiquei encantada, achando tudo lindo. Com o tempo, algumas coisas começaram a parecer estranhas: por que é que alguém se diz minimalista, mas vende produtos, livros, etc. no blog? Como é que alguém se acha capacitado para estabelecer o tempo que eu/o mundo deve dedicar à tarefa x ou y ou ainda "como planejar o seu dia de forma eficiente"? como alguém pode ser tão ousado a ponto de sugerir que móvel devo doar e como deve ser a minha casa? Essas coisas começaram a parecer contraditórias e eu decidi continuar lendo, certa de que conseguiria encontrar alguns "trigos" no meio de todo o "joio". E aí achei o seu blog. Simples, com um quê de "tentativa", de experimento... há sempre uma reflexão a mais. Não há "receitas de bolo", coisas prontas. Você não tenta empurrar ideias ou produtos. Gosto dos exemplos que você oferece. Adoro a história do seu amigo de Lisboa, o que reformou a casa antiga da família, depois de passar pelo sofrimento do desemprego aos 56 anos. Você respeita as pessoas. E não dá as coisas por encerradas, nada é fechado, estanque. Há sempre espaço e oxigênio. Viu? É isso.

    ResponderEliminar
  4. Olá, outra vez, anónima (acho que em vias de darmos início a uma amizade...):

    Do que eu mais gosto neste caminho por uma vida melhor, mais do lado do ser do que do ter, como dantes se dizia, é da diversidade de pessoas e, de «estilos» de vida... Com certeza que, como em tudo na vida, também eu não me identifico com muitos minimalistas, sobretudo aqueles que me parecem mais «convencidos» de si próprios, alguns dos quais com idade para serem meus filhos... Contudo, do muito que tenho procurado ler, sempre achei que estão sinceramente convictos do caminho que estão a trilhar. E entendo o que afirmam no seus blogues o fazem no sentido de partilharem uma experiência de vida, a deles próprios. Ao fazê-lo, estão também a comprometerem-se com um público leitor, muitas vezes na ordem dos milhares de «visitantes» por dia ou por semana. É pois natural que se sintam com alguma autoridade, tanto mais que, em geral, foram dos primeiros a optar por uma vida mais despojada e mais frugal, o que não é evidentemente nada fácil.

    Em geral, penso que começam por se tentar organizar (financeiramente) na vida, como por exemplo a jovem autora do blogue «Um ano sem Zara»: um desafio de um ano sem compras que não a tornou, creio, adepta do minimalismo, pelo menos como eu o entendo. Já Gregg, o ex-professor canadiano autor do blogue «Not buying anything» defende uma opção bem radical por uma vida simples.

    É verdade que a publicidade, sobretudo a mais invasora e sem apresentação clara dos critérios por que se rege, também me custa mais entender. Mas se for honestamente declarada, não tenho nada contra. Dou dois exemplos: o da Thaís Godinho do blogue «Vida oreganizada», uma publicitária que conseguiu com o seu blogue passar a ser organizadora profissional, explica detalhadamente esta situação (ver http://vidaorganizada.com/blog/entendendo-as-formas-de-publicidade-no-vida-organizada/); também os três jovens jornalistas autores do blogue 360 meridianos, declaram publicam como ganham dinheiro com o seu blogue (verhttp://papodehomem.com.br/nomade-como-comecar-a-ser-um-viajante-itinerante). Por outro lado, penso que também deve ser muito tentador receber algum dinheiro por uma matéria que exige, a uns mais do que a outros, é verdade sim, uma dedicação de várias horas por semana... Mas também sabemos que nem todos são, ou serão minimalistas mesmo. Para muitos pode apenas ser uma moda ou uma fase da vida.E depois quem não tem as suas contradições?

    Assim, para mim, o que é bom mesmo nesta «nossa» comunidade tão diferente, dispersa e alargada, é aprender um pouco com todos os que caminham nesta busca por uma vida com sentido. Mesmo as minhas pessoas aqui «do lado» não as quero a todas do mesmo modo e algumas delas vou até eliminar dos meus «blogues de apoio». Porque se houve um tempo em que a sua voz era importante para mim e para o meu próprio percurso, depois os nosso caminhos afastaram-se. Como acontece «lá fora», na vida real.

    E você, quando inicia um blogue seu? Ou torna públicas as suas opiniões tão acertadas? E para mais, escrevendo tão bem. Se quiser podemos continuar a falar por aqui ou então por email (maria.zinom@gmail.com). Eu gostaria muito. Um abraço desde Lisboa.

    ResponderEliminar
  5. Olá Maria (once more!),

    Agradeço a paciência de explicar-me o seu ponto de vista (bem mais ponderado que o meu). Como dizemos aqui, percebo melhor o "x" da questão agora! Vivo um momento de choque e perplexidade com o ambiente urbano do meu país, talvez isso explique a minha busca (infrutífera, como deve mesmo ser) por um pouco de "certeza e coerência" (abstrações nada humanas). Também tenho lido muito (Adorno, Engels, Marcuse) para tentar entender e encontro tanta coisa já explicada - como se sabia já de tudo há tanto tempo?!). Agradeço suas palavras de incentivo. Jamais terei um blog, porém. Sou muiiiiito tímida, nem blog, nem twitter, nem facebook, rien de rien. Além do que, há o perigo de começar a sentir-me *alguém* e passar a recomendar coisas e modos de vida, justo eu que de nada tenho certeza e tudo questiono (risos). Todavia, vamos nos falando sempre e eu sempre vou aprendendo. Sobre o solstício e a tradição das fogueiras. Ou sobre o Jardim do Campo Grande. Ou ainda sobre tolerância - by far, the hardest part . Muito obrigada por sua resposta. Reitero votos para um ano de 2014 de saúde e paz, extensivo ao amigo de Lisboa. Long life to you!

    ResponderEliminar