sábado, 16 de agosto de 2014

Aprender a viver a morte

Há uma ano atrás, quando a minha cadelinha Misty morreu, escrevi aqui sobre necessidade vital de aprendermos a viver a morte. A dos que amamos e a nossa também. Um ano depois, a Emília colocou a pergunta fundamental com que todos acabamos por nos confrontar várias vezes ao longo da vida: Como superar a perda? Mais precisamente, como superar a morte de quem amamos?  



Do modo como vivemos, não nos é possível fazê-lo devidamente. Porque vivemos numa espécie de anestesia perante a vida, recalcando para um lugar negro dentro de nós a dor sem fim da maior das perdas. Porque não podemos entender o que não conhecemos, nem integrámos nunca. Porque na verdade ninguém nos ensinou a viver uma vida plena, feliz e verdadeira da qual a morte é, evidentemente, parte integrante. E contudo sabemos (sabemos?) que se há algo absolutamente certo na vida desde o instante em que nascemos é a morte

Infelizmente, vivemos como se fôssemos eternos. Desperdiçando a vida com futilidades, questões menores, pequenas guerras de egos... Ou seja, não valorizando a maravilhosa benção que é cada dia que no final de cada noite nos é oferecido, nem cada noite que ganhamos no fim de cada dia! Porque é a morte que dá sentido à vida.


A morte, como a velhice e a doença são-nos sistematicamente escondidas e sonegadas. A partir do momento em que, já idosos, adoecemos gravemente, levam-nos para um hospital e, consoante a nossa idade e o tipo de hospital, lá ficamos mais ou menos dias, ligados a máquinas e tubos, até morrermos. A maioria dos mais velhos morre absolutamente só, muito tarde na noite. Muitos idosos morrem sós em casa e, por vezes, são encontrados meses, anos depois. Ninguém os procurou insistentemente, ninguém quis saber deles com a veemência do amor ou mesmo com a atenção que qualquer pessoa que conhecemos merece. Aconteceu em Portugal, aconteceu no Japão e por esse mundo desenvolvido.


Mas não foi, nem é sempre assim. Na Idade Média, por exemplo, quando a morte era considerada o «início da verdadeira vida», todos se despediam de quem ia «partir» e acompanhavam-no (as crianças na fila da frente) nessa passagem... O doente morria em paz e rodeado de quem o amava.  




Em algumas zonas de África, onde vivi, os funerais demoram dias. Todos, familiares e amigos reunidos, comem juntos e bebem juntos, cantam e choram, e todos conversam muito e abraçam-se e voltam a comer e a beber, a chorar e a cantar. Fazem o lutoJuntos.

Claro que dói muitíssimo perdermos quem amamos. E na história da humanidade a morte sempre foi uma «passagem» dolorosa. Como podia ser de outra forma, se a morte é para sempre, ou, para quem acredita na vida depois da morte, por um tempo incerto e longo? A morte é o desconhecido absoluto, seja ele a maior das solidões, seja o afastamento de quem amamos. 



No caso do amigo da Emília que morreu, pareceu-me que tinha vivido uma vida boa, preenchida e feliz. Com alguma sorte, talvez nem tivesse sequer dado conta de que morreu, ou pelo menos não sofreu muito. E, quando no fim da cerimónia da cremação, os amigos tiveram tanta vontade de bater palmas de alegria e gratidão pelo que a vida dele lhes dera e não o fizeram porque... não parecia permitido, mas deviam tê-lo feito. Porque assim deveria ser. 

Perante a morte, como em todas as fases de passagem, é necessário dedicarmo-nos muito a cuidarmos de nós e da dor da perda. Dedicarmo-nos com carinho a curar não apenas esta, mas todas as outras perdas que a morte sempre convoca já que a morte é sempre A PERDA última e maior. Reunirmos os amigos e lembrar tudo o que de bom vivemos e nos foi dado. Falar dos nossos mortos e da tristeza imensa da despedida, da angústia do nunca mais, do vazio aterrorizador do para sempre. Chorar livremente e entregarmo-nos à tristeza e abraçarmos quem gosta de nós e abraçarmo-nos a nós próprios.




Depois, um dia, damos conta de que faz sol e que o céu está azul e que as crianças riem e brincam e que o nosso gato pede colo, e que nos sabe bem cozinhar e comer com os amigos e que alguma melodia canta baixinho dentro de nós. Percebemos que os nossos mortos vivem no nosso coração e aí velam por nós e que devemos viver com alegria e gratidão para com todos os que nos amam e amaram e para com tudo que a vida nos oferece de bom. 

2 comentários:

  1. Maria,
    Que bom poder voltar a ler seus escritos deliciosos...sim, aqui é a ***velha anônima*** (por que eu acho que você saberá??? vanitas, omnia vanitas). Acredite, fiquei sem acesso à internet na minha casa por um bom tempo e como senti sua falta haha....(no trabalho todos os acessos são monitorados - yes, "1984" is there to stay!)
    Curioso você escrever sobre morte e luto. Curioso você usar a palavra *anestesia*. Concordo totalmente. Há uma anestesia coletiva (e não é recente - os meus "queridos" Karl M.e H. D. Thoreau já refletiam sobre as nossas várias alienações/anestesias). Por outro lado, te confesso que o que mais me choca são os rituais. Ficar velando alguém (e eu já velei alguns, por amor), às vezes de um dia para o outro, é terrível para mim. Vê como tudo é cultural? Na África, como você escreve, não haveria esse estranhamento. Permita-me, porém, discordar de um ponto. Para mim, não é a morte que dá sentido a vida. Eu não amo a vida mais por saber que ela vai terminar. É de cada minuto da própria vida que eu tiro sentido. E do aprendizado com mestres como você.

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  2. Querida anonimazinha:

    Na verdade estive muito tempo sem poder escrever aqui. Entre o muito trabalho, a doença daqueles que me são mais próximos e a minha própria (fiquei um mês sem me poder mexer com um problema na coluna vertebral), não tive como pensar a vida do modo que deveria e gosto de o fazer neste blogue.

    É muito bom poder tirar sentido da vida em si mesma e muito raro também. A maioria das pessoas desperdiça a vida, dia a dia, todos os dias, como se a vida não fosse um presente único, maravilhoso e com prazo de validade. Por isso falo na morte, até porque acho que ninguém quer nem ouvir falar nesse assunto. Por medo, claro. E para mim todos os medos são o medo da morte, sob outras roupagens. Claro que ter medo da morte é natural e essa atitude salva todos os dias milhares de vidas. Mas esconder a morte, sistematicamente, como se ela não existisse, é já do domínio da loucura.

    E, por favor, não me chame mestre. Não sou, nem quero sê-lo. Quero aprender todos os dias da minha vida a ser uma pessoa melhor. O que acontece é que estou prestes a fazer 59 anos, o que quer dizer que já vivi bastante: já li muito, já ouvi muitas pessoas, já vi muitas coisas. Mas mestre não sou.

    Beijo grande

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