domingo, 17 de março de 2013

Dia 168: Aprender a vermo-nos «fora de nós»

Uma das consequências que o compromisso de viver «um ano sem compras» me tem revelado é a de permitir que comecemos a ver-nos de fora de nós próprios. Este exercício que a psicoterapia ou o yoga ou a meditação, entre diversas outras práticas, também ensinam é essencial ao crescimento interior.

Da psicologia há muito que sabemos que cada um de nós tem a sua própria perceção dos outros, do mesmo modo que todos temos uma imagem mais ou menos desviada da nós próprios, seja ela física, psicológica ou ambas. E em geral não coincidem. Achamo-nos quase sempre ou mais bonitos ou mais velhos ou mais gordos ou mais sedutores ou mais limitados do que na verdade somos. E isto longe dos casos patológicos em que a imagem real e a subjetiva se encontram completamente desajustadas (complexo de superioridade, anorexia...). 

Conhecermo-nos e à realidade em que vivemos.

Ao exercermos com regularidade esta prática de nos vermos na qualidade de espetadores de um filme no qual somos as personagens principais, vamo-nos progressivamente dando conta do que origina muito do que nos acontece e que sentimos no quotidiano. Para quem nunca o fez é uma revelação: em situações de tensão sobretudo, umas vezes somos nós próprios que inconscientemente provocamos o que nos sucede, outras vezes são, também mais ou menos inconscientemente, os outros quem despoleta em nós sentimentos os mais diversos: mágoas, revolta, alegria, comoções... antes inexplicáveis.
Como todas as práticas, é sempre mais difícil no início. Um psiquiatra explicou-me uma vez que numa conversa a dois, podem estar vários eus reunidos: eu, o outro, eu a observar o outro, o outro a observar-nos aos dois... Numa típica situação psicoterapeutica estão quase sempre três: o analista, o paciente e o analista observando os dois. Muitas vezes, quando a terapia é aprofundada, são pelo menos quatro os que se reúnem, já que o próprio paciente apreende esta mesma técnica e  consegue ver-se a si e ao outro em relação terapêutica e simultaneamente na relação pessoal.

Ver o que os outros não veem.
Tentar vermo-nos «de fora» ensina-nos muito sobre nós próprios, sobre os outros, sobre a influência que detemos na realidade em que vivemos e, evidentemente, sobre a nossa a qualidade de vida. Exige um grande autocontrole e, pelo menos de início, uma espécie de voto de silêncio ou, pelo menos, uma atitude de retirada face a intervenções ou respostas espontâneas e emotivas. Nestes casos, quando solicitados a intervir, devemos afirmar que gostaríamos de pensar melhor, dizer que ainda não refletimos sobre o assunto ou, no mínimo, pedir que nos repitam a pergunta.

Treinar quando estamos sozinhos é uma boa forma de nos iniciarmos nesta prática: imaginando-nos com uma câmara, a filmar o lugar onde estamos e nós nesse lugar. Ajuda também relatarmos essa situação em voz alta, na terceira pessoa, como alguém que conta uma história: 

«Quando entrei no apartamento percebi logo que ali viviam várias pessoas. Na cozinha, à direita do hall de entrada, estava uma cafeteira ao lume e havia várias canecas sobre a mesa, ao lado da janela. De um quarto ao fundo do corredor, chegava uma conversa em inglês, acompanhada de uma banda sonora. O cheiro a incenso vinha da sala, em frente à cozinha. Aí, sentada num cadeirão de «orelhas» e embrulhada numa manta, estava uma mulher com a cara escondida por uma franja inclinada sobre um pequeno notebook onde escrevia.»

Adotarmos esta terceira visão num contexto em que estamos sós, mas com outros - como quando estamos sozinhos num café ou na praia -, pode considerar-se talvez uma segunda etapa, na medida em que a tendência será a de observarmos os outros como sempre o fizemos, quando agora o que nos interessa é assumir um olhar o mais objetivo possível. Um olhar estrangeiro que tenta perceber por que razão sentimos empatia, indiferença ou repulsa pelos outros. Ao mesmo tempo que tentamos ainda vermo-nos através dos olhos dos outros: «o que pensará de mim aquele senhor a ler o jornal? E o casal com filhos pequenos? E a empregada que serve à mesa?».

Num grupo, seja no trabalho ou num acontecimento social, colocarmo-nos de fora é mais difícil porque estamos em relação com os outros, dentro de nós e fora de nós. Ou seja, somos três. De ínício, temos de ir saltando entre cada uma destas perspetivas, um pouco ao sabor do que formos capazes, mas com o treino, vamos conseguindo começar por rebobinar o filme do que vivemos em cada uma das três representações da realidade e, mais tarde, conciliá-las, fazendo o que os psicoterapeutas também designam como perlaboração (do francês, «trabalhar interiormente por si próprio»): processo pelo qual o psicanalisando integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita; elaboração interpretativa.

Ouvir atentamente os outros, prestando atenção às suas palavras, mas também à respetiva postura corporal constitui um treino complementar que naturalmente acabamos por dominar. Ajuda muito também solicitar a opinião de outros sobre uma determinada pessoa ou situação e de seguida propor-lhes uma apreciação contrária, um ponto de vista completamente diferente: questionar o que nos é dado como certo e o que consideramos como adquirido, e perguntarmo-nos por que temos ou consolidámos uma determinada convicção sobre alguém ou sobre um acontecimento.

Com esta prática, não apenas podemos tornar a nossa vida muito mais rica, como aprender a valorizar o melhor de nós. Acredito que possa parecer difícil, mas com o tempo torna-se numa atitude natural e depois é só continuarmos a ir por aí.
Aprender a viver o melhor de nós.
É por tudo isto que penso que o compromisso de «um ano sem compras» obriga muitos dos que o fazem a continuá-lo depois de uma forma alargada em direção ao nosso coração e a uma vida melhor, no sentido ético e global destes termos. Porque, quando iniciamos o processo de um crescimento interior consciente, é muito provável que este se torne num caminho irreversível.

Caminhar.



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