domingo, 3 de fevereiro de 2013

Dia 125: Aprender a viver a morte

Choveu muito nas últimas semanas. Uma chuva fria de inverno, umas vezes miudinha, outras torrencialmente num temporal medonho que afetou a vida de muitas populações. Sem luz nem gás durante dias e dias, todos nos interrogámos como podia isto estar a suceder num país europeu em que a companhia de eletricidade apresenta lucros anuais de milhões de euros...


Vídeo aqui.
Não é possível viver indiferente a um tempo de chuva e o frio que acontece a par da crise em que vivemos: milhares de pessoas sem emprego e sem casa. Pessoas de sessenta e setenta anos que se vêm obrigadas, no fim da vida, a reconstrui-la: a mudar para casa minúsculas, arrastando consigo sacos de plástico e malas atadas com cordas; ou a albergar filhos e netos nas suas casas demasiado pequenas para tantos. E, sobretudo, sem perspetivas de mudança futura, sem um fim melhor à vista, sem um plano de reorganização da vida.

Foi nestas duas últimas semanas que a minha cadelinha adoeceu. Começou a coxear e pensei que tivesse torcido uma pata. A minha Misty era já velhinha quando a adotei. Conhecia-a no canil. Apática e triste, não comia e as senhoras do canil disseram-me que ela não tinha vontade de viver. Tinha 10 anos, dois sopros cardíacos, cataratas e uns quistos mamários que deveriam ser operados. Era um dia de sol de inverno e quando fomos as duas dar uma voltadei-me logo conta da sua personalidade independente e contudo atenta: passeou comigo, cheirou todos os cheiros das ervas e das pedras do caminho e manteve-se sempre junto de mim, sem pedir festas e só resistindo a voltar para o canil.


Fiquei com ela nesse mesmo dia! A pouco e pouco, revelou-me um amor incondicional, como só os animais sabem oferecer. Manteve-se sempre independente, sem nunca pedir nada: nem festas, nem comida, e só avisava quando precisava de ir à rua. Deveria ter sido muito magoada, porque quase perdera a alegria de viver. Não ladrava nunca. Quando eu chegava a casa, corria como podia até mim, com a cauda a abanar ligeiramente e parava a meio metro de mim, contemplando-me com os seus olhos meigos que já pouco viam. Deixava sempre comigo a iniciativa de lhe fazer festas e lhe dar mimos.

Depois de ter sido operada duas vezes, a nossa relação fortaleceu-se enormemente. A Mimi era uma resistente, uma lutadora e recobrou sempre das intervenções cirúrgicas com coragem e tranquilidade. Sempre tive cães em casa dos meus pais, mas ela foi primeira cadela inteiramente da minha responsabilidade, muito embora o meu filho, que também lhe queria muito, me ajudasse. Aos poucos, a Nitinha tornou-se a minha sombra cá em casa. Dormia ao fundo da minha cama, e o suspiro largo com que sempre adormecia, depois de se aninhar sobre os meus pés, era para mim um sinal (e um conforto) da felicidade em que vivia connosco.


Ainda o tratamento da pata não tinha terminado, quando ela desmaiou de manhã cedo na cozinha, Aquecemo-la, demos-lhe um banho quente, embrulhamo-la numa manta. Não voltou a si, o que foi uma benção porque gemia com dores. Quando a pude levar à consulta e depois de uma bateria de exames, a veterinária declarou que nada havia a fazer. Despedi-me dela, que já não era ela, mas sim uma bichinha em estado de coma, numa outra dimensão entre a vida e a morte. Guardei comigo o lenço de flores que lhe amarrara na coleira e que agora uso eu.

A tristeza que vivemos com a morte dos que amamos é uma aprendizagem que não nos é ensinada. O culto da (impossível) eterna juventude e o repúdio da doença e da velhice que sistematicamente nos são escondidas constituem uma grave ameaça à possiblidade de vivermos uma vida boa. Porque a morte é o que de mais inevitável existe na vida e, ao não nos prepararmos para a viver enquanto parte integrante da vida, condenamo-nos a uma existência pobre e fútil. Só a morte dá o verdadeiro valor à vida, dignificando-a e festejando-a nas suas infinitas possibilidades. Como no poema de Sophia de Mello:

Pudera eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes!
     Para poder responder aos teus convites
   Suspensos na surpresa dos instantes.

Uma parte do meu coração foi com a minha Misty para o céu dos cães, onde, embora não acredite em Deus, sei que ela me guarda um lugarzinho onde me espera.




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