Da psicologia há muito que sabemos que cada um de nós tem a sua própria perceção dos outros, do mesmo modo que todos temos uma imagem mais ou menos desviada da nós próprios, seja ela física, psicológica ou ambas. E em geral não coincidem. Achamo-nos quase sempre ou mais bonitos ou mais velhos ou mais gordos ou mais sedutores ou mais limitados do que na verdade somos. E isto longe dos casos patológicos em que a imagem real e a subjetiva se encontram completamente desajustadas (complexo de superioridade, anorexia...).
Conhecermo-nos e à realidade em que vivemos. |
Ao exercermos com regularidade esta prática de nos vermos na qualidade de espetadores de um filme no qual somos as personagens principais, vamo-nos progressivamente dando conta do que origina muito do que nos acontece e que sentimos no quotidiano. Para quem nunca o fez é uma revelação: em situações de tensão sobretudo, umas vezes somos nós próprios que inconscientemente provocamos o que nos sucede, outras vezes são, também mais ou menos inconscientemente, os outros quem despoleta em nós sentimentos os mais diversos: mágoas, revolta, alegria, comoções... antes inexplicáveis.
Como todas as práticas, é sempre mais difícil no início. Um psiquiatra explicou-me uma vez que numa conversa a dois, podem estar vários eus reunidos: eu, o outro, eu a observar o outro, o outro a observar-nos aos dois... Numa típica situação psicoterapeutica estão quase sempre três: o analista, o paciente e o analista observando os dois. Muitas vezes, quando a terapia é aprofundada, são pelo menos quatro os que se reúnem, já que o próprio paciente apreende esta mesma técnica e consegue ver-se a si e ao outro em relação terapêutica e simultaneamente na relação pessoal.Ver o que os outros não veem. |
Treinar quando estamos sozinhos é uma boa forma de nos iniciarmos nesta prática: imaginando-nos com uma câmara, a filmar o lugar onde estamos e nós nesse lugar. Ajuda também relatarmos essa situação em voz alta, na terceira pessoa, como alguém que conta uma história:
«Quando entrei no apartamento percebi logo que ali viviam várias pessoas. Na cozinha, à direita do hall de entrada, estava uma cafeteira ao lume e havia várias canecas sobre a mesa, ao lado da janela. De um quarto ao fundo do corredor, chegava uma conversa em inglês, acompanhada de uma banda sonora. O cheiro a incenso vinha da sala, em frente à cozinha. Aí, sentada num cadeirão de «orelhas» e embrulhada numa manta, estava uma mulher com a cara escondida por uma franja inclinada sobre um pequeno notebook onde escrevia.»
Adotarmos esta terceira visão num contexto em que estamos sós, mas com outros - como quando estamos sozinhos num café ou na praia -, pode considerar-se talvez uma segunda etapa, na medida em que a tendência será a de observarmos os outros como sempre o fizemos, quando agora o que nos interessa é assumir um olhar o mais objetivo possível. Um olhar estrangeiro que tenta perceber por que razão sentimos empatia, indiferença ou repulsa pelos outros. Ao mesmo tempo que tentamos ainda vermo-nos através dos olhos dos outros: «o que pensará de mim aquele senhor a ler o jornal? E o casal com filhos pequenos? E a empregada que serve à mesa?».
Num grupo, seja no trabalho ou num acontecimento social, colocarmo-nos de fora é mais difícil porque estamos em relação com os outros, dentro de nós e fora de nós. Ou seja, somos três. De ínício, temos de ir saltando entre cada uma destas perspetivas, um pouco ao sabor do que formos capazes, mas com o treino, vamos conseguindo começar por rebobinar o filme do que vivemos em cada uma das três representações da realidade e, mais tarde, conciliá-las, fazendo o que os psicoterapeutas também designam como perlaboração (do francês, «trabalhar interiormente por si próprio»): processo pelo qual o psicanalisando integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita; elaboração interpretativa.
Caminhar. |
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